TODOS OS CÃES MERECEM O CÉU

Por José Elias Mendes e Nasser Pena

Adoraria apagar da memória aquela fria manhã de outono, em 2004. Eu ainda dormia quando minha irmã mais nova e meu primo entraram, de arrombo, em meu quarto para proferirem, afobados, a curta frase que ecoaria em minha cabeça nos minutos em que eu me manteria estático, imóvel, em choque.

– Kika morreu!

Minha amiga Kika só tinha oito anos, tão jovem! Se bem que, dizem, no universo canino Kika tinha o equivalente a 56 anos humanos. Tão alegre e tão dócil, tinha o hábito de sempre virar a barriga nos pedindo uma coçadinha.

Durante o cortejo fúnebre em que toda a família acompanhou minha fiel companheira até sua última morada – um buraco com um bocado de cal virgem – só consegui pensar que Kika nunca mais viraria a barriga. Acabou a coceira.

Foto: Acervo pessoal de Nasser Pena

Revivi, inevitavelmente, aquela fatídica manhã fria de outono tão logo entrei na recepção do Crematório de Animais Anjos de Patas, na cidade de Uberlândia, em Minas Gerais. Estrategicamente, o ambiente é calmo, bem iluminado e decorado em tons claros. Mais tarde, os donos do local me explicariam que a intenção é diminuir a tensão inerente aos clientes do estabelecimento. A estratégia é eficiente: me lembrei de Kika com carinho e nostalgia.

Perde-se, diariamente, companheiros de estimação pelos mais diversos motivos e falar sobre a morte – seja de quem for – sempre é tocar em um dos maiores tabus de nossa sociedade. Poucas são as pessoas que conseguem lidar com o fim de forma tranquila, entendendo que é uma consequência indissociável da vida. Alguns dizem que o sofrimento trazido advém da perda ou da forte ligação emocional, mas é certo que ainda não desvendamos por completo toda a miscelânea de sentimentos relacionados a esse fenômeno, a esse ponto final (será?).

Quando se fala sobre a morte e as consequências que ela traz à vida dos próximos, acabamos por deixar de lado alguns personagens importantes. Suas mortes são, geralmente, negligenciadas, pouco lembradas e pouco faladas. É como se o sofrimento fosse menor (ou não devesse existir). Esse é o lugar mais comum das mortes de animais. “Antes de morrer é bonitinho, é engraçadinho, mas depois que morre, é só cachorro”, lamenta Fernanda Mura, veterinária e uma das idealizadoras do crematório em Uberlândia, pioneiro na região.

Foto: Acervo pessoal de Larissa Stein

Larissa Stein, estudante de Psicologia pela Faculdade Pitágoras de Uberlândia, perdeu recentemente seu companheiro cachorro, Snoopy, e sofreu reprimendas no ambiente de trabalho. “Esse tipo de luto não é socialmente aceito. As pessoas acabam não sendo muito solidárias e assim fica mais complicado de superar a perda, visto que um passo importante para a superação é permitir-se sofrer e não sentir vergonha da própria dor”.

Foi justamente se apoiando nesta ideia que Fernanda e seu sócio, o também veterinário, Eduardo Araújo, decidiram embarcar juntos na abertura de um crematório para animais. Para eles, o luto pela perda de um companheiro de estimação é exatamente o mesmo do que por seres humanos e deve ser respeitado. “O principal objetivo é garantir que os donos coloquem um ponto final digno na trajetória com seus animaizinhos e que consigam superar o luto com o respeito que ele merece”, explica a empresária.

O sócio completa o pensamento e afirma que “quando se pensa em morte, seja de quem for, devemos lidar com os sentimentos de sofrimento que devem ser respeitados e tratados com toda a sensibilidade possível”. Dessa forma, o Crematório de Animais Anjos de Patas, por ser pioneiro, atende donos de toda a grande região do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba, além de outras localidades próximas. Os diversos planos funerários contemplam desde o transporte do corpo do animal até o destino final das cinzas – que podem ser dispersas no jardim da empresa, levadas para casa ou ficarem hospedadas em um cinerário, onde podem ser visitadas. O serviço ainda conta com uma sala de velório, uma cortesia da casa aos donos que desejam deixar seu último adeus ao bichinho.

Além disso, a cremação é, ainda, o melhor caminho para o corpo do animal, já que é ambientalmente sustentável. Eduardo explica que as formas tradicionais de descarte, como enterrar ou jogar em terrenos e lixões, são crimes ambientais e podem criar focos de zoonoses ou contaminar o solo e os lençóis freáticos com a liberação de necrochorume – um líquido que possui substâncias altamente tóxicas.

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Fotos: Acervo pessoal de Eduardo Araújo e Fernanda Mura / Crematório de Animais Anjos de Patas

Também estudante de Psicologia, da Universidade Federal do Paraná, Amanda Calvetti conhece o sentimento de perder um amigo de quatro patas e concorda com a filosofia dos veterinários Eduardo e Fernanda. Amanda já sofreu a perda de três gatinhos que eram considerados membros da família – Princesa, Natasha e Toddy – e, mesmo algum tempo depois, continua carregando o vazio da falta dos seus fiéis companheiros. Para ela, a morte dos animais realmente é menos respeitada na sociedade e, para ilustrar, lembra de um caso pessoal: “estávamos enterrando a Natasha quando, coincidentemente, o caminhão de lixo passou. O gari, sem falar nada, a pegou pelo rabo, jogou no caminhão e foi embora”.

Apesar disso, Amanda acredita que o luto é uma experiência individual cuja vivência é muito importante. “O momento de luto é muito difícil, mas deve ser bem elaborado para que a pessoa consiga seguir em frente e aceitar a morte como algo natural e sobre a qual não temos controle”.

Kika, Princesa, Natasha, Toddy, Snoopy e tantos outros são apenas exemplos do que muita gente já vivenciou. Presentes na vida do homem desde os mais remotos registros, os animais de estimação sempre ocuparam um importante espaço em nosso cotidiano, seja pelo trabalho ou pelo companheirismo e conexão emocional. Não é à toa que um dos mais comuns sonhos de infância é um amigo animal. Seja cachorro, gato, pássaro, coelho, porquinho da índia, cavalo, vaca e até mesmo os tipos mais exóticos, os homens sempre se fascinaram pelos animais.

Todo esse fascínio e apego se convertem em sofrimento quando esses companheiros deixam a vida, mas Amanda deixa sua dica para reduzir a tristeza da perda. “O que eu faço para diminuir o sofrimento é, depois de alguns meses, adotar outro gatinho que esteja precisando de um lar. Essa foi a forma que eu encontrei pra lidar com o luto pelos meus amiguinhos. Eu sinto saudades deles, mas lembro deles com carinho e amor”.

Fotos: Acervo pessoal de Amanda Calvetti